As
tardes quentes de Barcelona
Pontualmente
Jose Izquierdo deixa o edifício quando os sinos dobram as seis da
tarde. É verão e o sol ainda vai alto. Um mormaço inunda de calor
as ruas de Barcelona. Na Calle Benedicto Mateo ele avista o filho
vindo de longe, em direção contrária.
Todos
os dias o mesmo ritual se dá. Sincopados, eles mancam da perna
esquerda e cumprem seus itinerários constrangidos, num espelho
inevitável. Cruzam olhares e se dão buenas noches. É raro
que parem para conversar sobre algum pormenor. Ambos têm pressa.
Para
Victor, a sensação é incômoda. A primeira coreografia no Liceu e
seu afinco em executá-la à perfeição deixará marcas para toda
uma vida. O pai, por sua vez, sempre mancou daquela perna e jamais
deu detalhes de como acontecera.
Tratava
o ferimento todos os dias, trocava a gaze pondo-lhe bálsamos e
mercúrio. Parte solene de sua rotina antes de sair para o Hotel
Colón, onde exerceu sua profissão com a nobreza natural que
emoldurava um homem simples, correto e digno. Há uma aura de
patriarca sobre ele que acompanhará o caráter firme e original de
seu filho como um farol em alto-mar, um halo de santidade que nada
poderá arrefecer, uma marca indelével que talvez poucos
compreenderam. Victor sempre falará sobre o pai com o mesmo
sentimento que traz ao referir-se às coisas mais sagradas.
José
trabalhou no Cólon por mais de trinta anos. Estava lá desde sua
inauguração. Quando completou vinte e cinco anos de trabalho,
funcionário infalível e pontual que era, a direção do hotel
entregou-lhe, num ato de consideração e carinho, uma placa de prata
com seu nome gravado.
Tornou-se
um personagem querido por muitos dos hóspedes costumeiros e sua
discrição fazia com que eles confiassem nele como se fosse um velho
e estimado amigo.
Victoria de Los Angeles gostava muito de José. Ela
sempre se hospedava no mesmo hotel, cuja localização no coração
da cidade e defronte a magnífica Catedral de Barcelona, inspirava do
alto soprano de suas torres todos os obeliscos em direção ao céu.
Barcelona era um bordado vivo e latejante apontando estrelas!
A
vida noturna dos artistas incitava ao relacionamento com o camareiro
do hotel. Nada como chegar tarde da noite e receber dele o calor e a
atenção de seu amável sorriso e obter ainda o capricho de alguma
coisa para comer ou conversar sobre a vida que corria marcada a
passos largos.
Izquierdo
era ótimo cozinheiro também. Em seus raros dias de folga costumava
preparar paellas que todos deveriam comer tão logo ele as
retirasse do fogo, um ritual que cumpriam com a prontidão dos
talheres em riste.
Camilo
José Cela, um escritor espanhol famoso em sua época era outro
hóspede que adorava conversar com José sobre tudo, de notícias dos
periódicos a receitas tradicionais.
Enquanto
falam animosamente, o olhar de José Izquierdo se perde por vezes no
reflexo do grande espelho do salão do hotel. A imagem de Victor
cruzando com ele na Benedicto Mateo volta-lhe à mente naquele
momento.
Victor
abre a porta do apartamento e checa o horário em seu relógio de
pulso. Ainda há tempo até que ele saia para o ensaio no Liceu. Ele
também trabalha exaustivamente em outro hotel e sai às ruas com
frequência para executar seu ofício.
Estira-se
no sofá da grande sala e olha o reflexo do lustre no espelho opaco.
Lembra-se do pai e sorri quando a cena do que lhe ocorrera naquela
tarde vem à sua mente. Aquela sem dúvida era uma boa estória para
tirar um sorriso do rosto de José Izquierdo:
No
elevador do Manilla, Victor entra apressado e não pode deixar de
notar um casal pitoresco que também se dirigia para o térreo. A
mulher tem o rosto retocado exaustivamente com pó de arroz, o que
torna sua pele alva algo quase fantasmagórico.
Distraído
por aquela visão quase transcendente, ele pisou por descuido no pé
do cavalheiro cujos bigodes eriçados evocaram-lhe um sentimento mais
bizarro ainda diante da situação constrangedora.
Mesmo
assim ele pediu desculpas pelo inconveniente. Salvador Dalí nada
respondeu.
O
pintor catalão não reconheceu a própria cena surrealista que
acabara de protagonizar, quando o pé de um futuro coreógrafo, ainda
que sem propósito algum estabelecido, insuflara asas de Mercúrio no
destino de seus passos enquanto Gala sonhava flamencos no piso do
elevador. Arenas invisíveis. Olé!