quarta-feira, 9 de outubro de 2019

As tardes quentes de Barcelona



As tardes quentes de Barcelona


Pontualmente Jose Izquierdo deixa o edifício quando os sinos dobram as seis da tarde. É verão e o sol ainda vai alto. Um mormaço inunda de calor as ruas de Barcelona. Na Calle Benedicto Mateo ele avista o filho vindo de longe, em direção contrária.
Todos os dias o mesmo ritual se dá. Sincopados, eles mancam da perna esquerda e cumprem seus itinerários constrangidos, num espelho inevitável. Cruzam olhares e se dão buenas noches. É raro que parem para conversar sobre algum pormenor. Ambos têm pressa.
Para Victor, a sensação é incômoda. A primeira coreografia no Liceu e seu afinco em executá-la à perfeição deixará marcas para toda uma vida. O pai, por sua vez, sempre mancou daquela perna e jamais deu detalhes de como acontecera.
Tratava o ferimento todos os dias, trocava a gaze pondo-lhe bálsamos e mercúrio. Parte solene de sua rotina antes de sair para o Hotel Colón, onde exerceu sua profissão com a nobreza natural que emoldurava um homem simples, correto e digno. Há uma aura de patriarca sobre ele que acompanhará o caráter firme e original de seu filho como um farol em alto-mar, um halo de santidade que nada poderá arrefecer, uma marca indelével que talvez poucos compreenderam. Victor sempre falará sobre o pai com o mesmo sentimento que traz ao referir-se às coisas mais sagradas.
José trabalhou no Cólon por mais de trinta anos. Estava lá desde sua inauguração. Quando completou vinte e cinco anos de trabalho, funcionário infalível e pontual que era, a direção do hotel entregou-lhe, num ato de consideração e carinho, uma placa de prata com seu nome gravado.
Tornou-se um personagem querido por muitos dos hóspedes costumeiros e sua discrição fazia com que eles confiassem nele como se fosse um velho e estimado amigo. 
Victoria de Los Angeles gostava muito de José. Ela sempre se hospedava no mesmo hotel, cuja localização no coração da cidade e defronte a magnífica Catedral de Barcelona, inspirava do alto soprano de suas torres todos os obeliscos em direção ao céu. Barcelona era um bordado vivo e latejante apontando estrelas!
A vida noturna dos artistas incitava ao relacionamento com o camareiro do hotel. Nada como chegar tarde da noite e receber dele o calor e a atenção de seu amável sorriso e obter ainda o capricho de alguma coisa para comer ou conversar sobre a vida que corria marcada a passos largos.
Izquierdo era ótimo cozinheiro também. Em seus raros dias de folga costumava preparar paellas que todos deveriam comer tão logo ele as retirasse do fogo, um ritual que cumpriam com a prontidão dos talheres em riste.
Camilo José Cela, um escritor espanhol famoso em sua época era outro hóspede que adorava conversar com José sobre tudo, de notícias dos periódicos a receitas tradicionais.
Enquanto falam animosamente, o olhar de José Izquierdo se perde por vezes no reflexo do grande espelho do salão do hotel. A imagem de Victor cruzando com ele na Benedicto Mateo volta-lhe à mente naquele momento.

Victor abre a porta do apartamento e checa o horário em seu relógio de pulso. Ainda há tempo até que ele saia para o ensaio no Liceu. Ele também trabalha exaustivamente em outro hotel e sai às ruas com frequência para executar seu ofício.
Estira-se no sofá da grande sala e olha o reflexo do lustre no espelho opaco. Lembra-se do pai e sorri quando a cena do que lhe ocorrera naquela tarde vem à sua mente. Aquela sem dúvida era uma boa estória para tirar um sorriso do rosto de José Izquierdo:
No elevador do Manilla, Victor entra apressado e não pode deixar de notar um casal pitoresco que também se dirigia para o térreo. A mulher tem o rosto retocado exaustivamente com pó de arroz, o que torna sua pele alva algo quase fantasmagórico.
Distraído por aquela visão quase transcendente, ele pisou por descuido no pé do cavalheiro cujos bigodes eriçados evocaram-lhe um sentimento mais bizarro ainda diante da situação constrangedora.
Mesmo assim ele pediu desculpas pelo inconveniente. Salvador Dalí nada respondeu.
O pintor catalão não reconheceu a própria cena surrealista que acabara de protagonizar, quando o pé de um futuro coreógrafo, ainda que sem propósito algum estabelecido, insuflara asas de Mercúrio no destino de seus passos enquanto Gala sonhava flamencos no piso do elevador. Arenas invisíveis. Olé!






segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Chopin e o espelho de Paixão





Chopin e o espelho de Paixão


Laura Proença, a estrela brasileira consagrada de Béjart e que esteve com ele desde o início, no Ballet de L’Etoile, grupo que firmou os alicerces do que viria a ser depois o Ballet do Século XX, ficou por certo tempo em Petrópolis curiosa a respeito do que ocorria naquela montanha incendiária de dervixes.
Algo que ela mesma ressaltou certa vez era sua impressão a respeito da atmosfera rarefeita que se respirava na vida nomádica e cigana daqueles bailarinos, vivendo em verdadeiras comunidades e compartilhando o que tinham à mão para alicerçarem juntos a mais sincera aspiração de seus sonhos. Isso foi o que Laura experimentou muito de perto nos primeiros anos com Maurice Béjart, desta vez porém, no fôlego e raça dos trópicos.
Como uma gata imperando sobre todas as órbitas, ela estendia sua rede na varanda da casa onde moravam Victor e a maioria de seus bailarinos e era ali que dormia, embalada pelo ar fresco da serra de Petrópolis em seu mar de estrelas.
É incrível como Laura pôde sentir no ar numa magia tão difusa, tão diferente de tudo aquilo que vivenciou com Béjart na Europa, algo que nem pertencia mais à sua geração e ainda assim ela quis fazer parte daquele Mistério. Laura Proença também queria dançar o Chopin de Victor Navarro. Na verdade, todos queriam.
Mas ela apaixonou-se perdidamente por um pas de deux que já estava coreografado para Claudio Bernardo e Paulo Pacheco. Ainda assim ela disse abertamente que seria lindo se ela, uma mulher madura, dançasse com Claudio, àquela altura um jovem de dezenove anos em quem ela reconhecia um talento excepcional.
Mais do que criar audiências, Paixão trouxe num certo sentido uma predisposição à cumplicidade da parte daqueles que foram sensivelmente tocados por ela. Houve um movimento geral que despertou a atenção da classe artística diante de seu Mistério.
Atores como Marco Nanini, com quem conversei certa vez a respeito junto a um amigo que tínhamos em comum, disse que fora um balé que ele gostaria muito de ter visto mais vezes.
Lennie Dale também foi adorador confesso, daqueles que gritavam após cada cena, como se estivesse solto numa arena de leões. E a dança de Lennie também provocara uma catarse semelhante, talvez mais espalhafatosa por conta de tanta purpurina disseminada pelos Dzi Croquetes mas não menos sagrada & profana que ‘Paixão’ o foi.
Chopin foi um mapa cruzado na vida de muitos seres. Ouvi Paulo Pacheco falar de Chopin muito antes de Petrópolis acontecer na estória da Victor Navarro Companhia de Dança, ainda em São Paulo, no apartamento de Chica Timbó, quando Paulo e Robson Rosa estavam ali hospedados em 1983 e onde de certa maneira, todos os bailarinos desabrigados daqueles anos encontravam ninho provisório.
É quase impossível falar de Chopin omitindo Paixão. As chamas desses dois trabalhos se cruzam como alfa e ômega contendo simultaneamente todas as possibilidades em seu veio de luzes, como o leito de um grande rio por onde muitos navegaram mares e ares.
Novamente, dentre uma companhia que contava com dezenove feras dançantes, Victor escolheu seis bailarinos e deu andamento a seu projeto. Foi também com seis bailarinos que Victor embrenhou-se numa fazenda de Goiás e concebeu Paixão, um espetáculo que espelhava suas próprias impressões a respeito da vida, retornos insondáveis que se repetiam em diversas cenas, mapas telúricos de uma estória que foi contada das entranhas de sua inspiração sem fronteiras ou idiomas ou moral.
Paixão foi o primeiro balé a incorporar um pas de deux entre dois homens, o que depois (rapidamente!) foi imitado por grupos de prestígio e outros mais nem tanto assim. Victor trabalhou nos limites de sua verve criativa e para que se tenha uma ideia do que foi a concepção inicial e a dinâmica desse espetáculo, La Mama Morta, o penúltimo quadro que a coreografia toda apresentava, foi terminado minutos antes da estreia oficial num teatro de Goiânia, em dezembro de 1982.
Claudio Bernardo, um dos integrantes do grupo selecionado para Chopin, declarou anos depois:
– Chopin foi uma forma para nós todos de seguirmos em frente, um motor de disciplina e de integridade, pois hoje nós sabemos que nos sacrificamos ao máximo para que ele existisse e no final, fomos nós que existimos depois da obra. Acho que foi o processo onde eu mais aprendi na vida, e isso é medalha de profissão, portanto, a paga é merecida.
Claudio voaria depois para a Bélgica, ávido por estudar na Mudra de Béjart, numa sequência de fatos claramente inspirada pela presença de Laura Proença em Petrópolis e cedo se destacou entre os novos coreógrafos que Béjart queria ver florescendo a partir de trabalhos que a incansável sede de busca de Claudio Bernardo logo tratou de reunir partindo para a ação com o suporte de outros bailarinos que se dispuseram a trabalhar num projeto paralelo que ele criou ali mesmo, diante das condições que se mostraram propícias.
Mais do que criar alardes ou seguidores míopes, Victor Navarro criou uma atmosfera de mágica e possibilidades nas vidas de todos aqueles que se deixaram permear por seu condão, que acreditaram no valor de sua pirlimpsiquice e seguiram desbravando legitimidade por vias autênticas, mesmo que na contramão de tudo.
Ninguém recebeu multas. Todos pecaram devidamente e foram perdoados.



La Mama Morta




La Mama Morta

O menino debruçou-se no parapeito da varanda do apartamento para ver o cortejo fúnebre. Custava-lhe acreditar que encerrado naquele ataúde de madeira escura estava o corpo inerte de sua mãe. Era a visão fria de seu desaparecimento que deslizava impiedosamente diante de seus olhos que subitamente se umedeceram. Não lhe permitiram acompanhar o féretro até o cemitério.
Permaneceu sozinho vendo os cômodos agora ausentes das pessoas tristes e desoladas que até pouco tempo estavam ali, murmurando orações, pêsames e comentários sibilantes pelos corredores.
A imagem pálida do pai marcaria para sempre a lembrança desse dia como um selo. Tantos selos tatuados a ferro e fogo em seu alvo coração de poeta, de eterno menino-almirante em seu terno branco de primeira comunhão.
Enquanto todos ainda velavam o esquife, no nicho de uma sala Victor viu uma imagem da Virgem surgir entre pequenas luzes. Em silêncio ele permaneceu atento até que a visão se desvanecesse. Seu olhar de criança não duvidou por um segundo da veracidade do que vira.
E talvez porque desde sempre sua qualidade de anjo estivesse tão à flor da pele para todos que o conheciam, quando ele comentou sobre sua visão celestial com os presentes ninguém expressou qualquer dúvida de que ele realmente dizia a verdade. Não era uma criança que falasse compulsivamente. Pelo contrário, a introspecção era-lhe um traço marcante e familiar, herança talvez do caráter soturno de José Izquierdo, uma arca de segredos contidos perante a serenidade de seus olhos curiosos e afiados, de quem enxerga longes latitudes na toalha de uma mesa posta…
Comentou-se afirmativa e resignadamente entre os presentes que Victor tivera uma visão da Virgem. Era um fato consumado para o qual não haveria qualquer margem de dúvidas, um consenso destilado de um momento sóbrio e reservado, de revelações que se produzem quando as fronteiras de alguns mundos se avistam e colidem entre si, esvaindo qualquer lógica garantida por conceitos de realidade visível.
Muitas vezes Victor inventava novenas que prescindiam de rezas e ladainhas e procurava trazer flores da vizinhança para colocar diante da pequena imagem da Virgem que Pepa mantinha sempre iluminada sob a alvura de uma toalha de linho impecavelmente engomada.
Ele tocava a campainha das casas e esperava que alguém abrisse a porta para pedir que lhe oferecessem uma determinada flor que avistara da calçada e que ele queria muito trazer como uma oferenda à Virgem. Era sempre atendido em sua gentileza inata atravessada pelo carisma azul de seus olhos meninos.
Mas também não se furtava ao desejo de esgueirar-se sorrateiramente por entre as grades dos portões se alguma flor tentasse seriamente sua busca de aroma e beleza para pecar permissivamente em nome da mãe de Deus caso não lhe abrissem a porta por conta da ausência dos moradores ou pela preguiça da siesta nas tardes quentes em Barcelona. Mas esses interlúdios e percalços jamais eram narrados em casa.
Ele dispunha de seu ramalhete e criava seu ritual colorido de beleza como a maior oferenda diante da imagem iluminada. A mãe, em silêncio, admirava-lhe a atitude e concentração com que executava seu pequeno ofício. Seu anjo mais novo...
Pepa… e um rosário de recordações percorreu serenamente sua mente. Vieram-lhe à memória o trabalho que ambos faziam com os bonecos de pano (muñecos) que ela costurava na máquina e que ele, com a serragem mais fina que era colhida nas carpintarias do bairro, enchia bracinhos, mãozinhas e perninhas com a precisão de um relojoeiro. Tão companheiros, tão juntos. Tardes que não tinham fim.
Depois do trabalho artesanal com os bonecos, estes eram enviados de volta à fábrica onde eram devidamente vestidos e colocados em suas caixas para continuarem suas vidas de brinquedo em outras mãos.
E o som feliz do bilro onde ela tecia rendas delicadas, como o marulhar interminável de uma chuva que penetrava a casa toda em filigranas... Pepa era uma fonte de mágicas insondáveis. Do vão de uma porta no hall de entrada do apartamento, ela retirou certa vez vários objetos que escondera ao longo dos anos em suas pandoras. Victor olhou a cena maravilhado.
Anos depois ele não se recordaria de nenhum ítem específico. Mas a atmosfera de seu brilho ficaria guardada em suas retinas de coreógrafo e em seu coração pleno de segredos que jamais revelou a ninguém. A vida era fantástica em sua simplicidade espartana.
Também ele reconstruiria suas pandoras na forma dos palcos e das salas de ensaio onde criou obras enigmáticas, seus mistérios, suas lendas.
Os bonecos ganhariam vida quando fossem trazidos à cena novamente para ilustrar uma das coreografias de Chopin, um balé que permaneceria inédito e criaria uma neblina ao redor do nome de Victor Navarro.




Chopin - Etude in G flat major Op. 10 No. 5
https://www.youtube.com/watch?v=ve5tfzJINaY




domingo, 6 de outubro de 2019

Marrocos




Marrocos


Akko, 4 Outubro 2019


Quando penso que Victor vive hoje no Marrocos, tão perto de mim, na esquina do Estreito de Gibraltar, um sentimento vago e feliz me invade em suas certezas. Penso nele como um nômade irredutível que jamais se rendeu às normas dos holofotes e exigências dos teatros onde trabalhou. Talvez sua única lei seja mesmo esta: a de se render somente àquilo em que o mar azul de seus olhos deitar suas âncoras.
À sua própria maneira ele encontrou meios de sobreviver às suas próprias custas, livre de qualquer outro compromisso que não fosse com ele mesmo e suas conquistas silenciosas. Sagrou-se almirante de sua própria esquadra.
Por muito tempo achei que Victor Navarro tinha acesso à sabedoria dos dervixes. E olhando a figura patriarcal de sua imagem, um misto de rock’n’roll com Rumi parece realmente emergir de sua aura.
Coisas estranhas sempre cercaram nosso convívio. Quando Victor veio a Jerusalém e ficou comigo por algumas semanas em Ein Karem, uma aldeia anexa e próxima da cidade, fomos numa tarde passear no Vale Iemenita, um lugar mágico e ancestral próximo à velha floresta de Jerusalém.
Estava gravando com ele uma série de entrevistas e destacando diferentes pontos de sua carreira e vida pessoal. Queria uma abordagem ampla que não se limitasse apenas à cronologia ordinária dos fatos. Queria absorver, antes de mais nada, o significado de sua existência errante, checar tudo o que imaginara dele até então, sem previsão cronológica de coletar qualquer material que não fosse apenas o humano, o imprescindível, o essencial. A gente não deve jamais temer a audácia de ser inédito, de fazer tudo com a autenticidade jamais formatada ou experimentada por dogmas anteriores.
Nessa mesma tarde, quando o sol já se punha, ouvimos ao longe o canto do pastor libanês sobre o qual Brian Eno e David Byrne, através da sobreposição de guitarras eleétricas e percussão, criariam o Regiment, uma das peças emblemáticas usadas por Victor Navarro em Paixão a partir do álbum que eles lançaram e que era a base principal do espetáculo.
A princípio não acreditamos no que estávamos ouvindo. Ficamos paralisados, esperando que a verdade se revelasse ali mesmo naquela paisagem do vale, onde o sol se punha num possível sorriso de fogo. Uma chama ergueu-se dentro de nós e permanecemos em silêncio. Prenúncios? Quem há de saber? Jamais comentamos o fato outra vez.
Tempos depois uma amiga no facebook compartilhou essa música e me chamou atenção o título em árabe, o que me fez ouví-la. Era ela. O Regiment a capella:

https://www.youtube.com/watch?v=guwJqNrW6_k




Voo 7844 Barcelona – Tel-Aviv









Voo 7844 Barcelona – Tel-Aviv


Chego ao aeroporto de Barcelona vindo de Sevilha, inquieto e receoso como sempre com possíveis atrasos de percurso. São 22:00 hs e depois do check-in, ainda com bastante tempo, sento-me para comer uma deliciosa fatia de tortilla com queijo que preparei em casa.
Ansioso por chegar a Israel, embarco, e uma vez que a aeronave decola, minha mente também começa a voar... mil coisas passam pela minha cabeça. Hoje é 19 de Março, Dia de São José... Um dia muito especial... Meu pai cumpriria cem anos e comemoraria seu onomástico. E também porque me dirijo pela primeira vez à Terra Santa.
Ein Karem, uma pequena aldeia colada a Jerusalém. Além disso, a expectativa no objetivo de minha viagem, pois devo encontrar-me com CT, um brasileiro apaixonado pela Dança e grande admirador de meu trabalho e a quem conheci na década de 80 no Rio de Janeiro.
Automaticamente começo a repassar minha vida desde a infância em rápidos flashes, quase cinematográficos.
Aterrizamos no horário previsto, 5:15 hora local. Um voo tranquilo e sem contratempos. Na saída, não vendo Celso ou Ora, sua esposa, dirijo-me ao balcão de informações onde uma jovem me diz haver um recado para mim dizendo que meus amigos estão atrasados. Meu primeiro pensamento é que tiveram algum contratempo com o carro ou o despertador.
Sem saber quanto tempo podia durar a espera e depois de ir e vir com minha bagagem, decidi resignar-me com calma e esperar sentado próximo à porta de entrada do aeroporto, observando pessoas tão diferentes que passavam, numa expressão tão diversa de meu ser habitual...


A Viagem


Acordo cedo para buscar Victor Navarro em Tel-Aviv. Seu voo chega de Barcelona às 4:55. Eu e Ora tínhamos programado sair de casa por volta de 4:30. A estrada livre de final de madrugada e os procedimentos de praxe com a imigração, assim como as inevitáveis filas nas esteiras de bagagens, nos davam tempo de folga para chegar no horário.
Rodo minha chave duas vezes. Ela corre pelo tambor do ferrolho a esmo. Um frio na boca do estômago. Não quero acreditar. Tranco novamente para tentar inverter o destino. Nada.
Meus movimentos de rotação não surtem qualquer efeito. Quem sabe abrindo por fora? Ligamos para Mihal, a proprietária de nossa casa. Ela chega enérgica e ainda sonâmbula em seu hobby imaculado para tentar o impossível.
Chamamos um chaveiro particular. Não há outra saída. As grades externas das janelas não permitem que pulemos para a liberdade. Ele vem de Jerusalém em meia hora. O relógio impiedosamente continua seu pequeno inferno. Custa a encontrar nossa casa no meio da escuridão.
Por meio de uma amiga da agência de viagens conseguimos deixar uma mensagem para Victor no balcão de informações.
Não há nada a fazer exceto esperar. Não me dou o direito de perder o prumo. Preparo mais um café turco, que sorvo aos poucos checando minhas mãos ao acaso, num disfarce para ver o quanto tremem de nervoso... Minha única preocupação é que Victor se impaciente. Esperar lucidamente é o que me cabe no momento.
Quando o trabalho com a porta termina saímos como dois pássaros com asas súbitas nos pés. Victor Navarro me espera por uma hora e meia no saguão do aeroporto.
Não o vejo quando chego. Caminho na direção de um senhor de cabelos brancos que julgo ser ele. Engano. Mas uma voz suave me chama pelo nome vinda de outro lugar. É ele, o velho dervixe. Victor Navarro emana um carisma peculiar em meio a todas aquelas pessoas ali sentadas. Ele parece diferente de todos e ao mesmo tempo é tão semelhante que apenas um radar perceptível pode detectá-lo. Minha preocupação e constrangimento obscureceram minha busca naquele momento. Trinta anos são passados desde que nos encontramos pessoalmente.
Quando me aproximo, ele me abraça caloroso. Fico sabendo que por casualidade ele se dirigira ao balcão de informações e estava ciente de que algum problema de última hora acontecera. Sorri isento, como se do alto de uma montanha, quando lhe conto do ocorrido com as chaves. Ele tem a fragilidade dócil e feroz dos sagrados leões do Himalaia.


Ein Karem, 19.08.14


Victor Navarro está sendo operado hoje em Sevilha. Mandei-lhe ontem uma Mandala linda do Buda da Medicina e uma mensagem em seu e-mail, a qual ele respondeu pronta e lindamente.
Hoje queimei incensos, acendi velas para Padmasambhava e ofereci água para que os deuses possam olhar por ele neste momento. Há um longo mantra para Shiva entoado neste momento pela casa, preces que se espraiam janelas afora levadas pela fumaça perfumada da mirra queimando sobre carvões... Para que Victor possa reconstruir sua vida junto com sua tíbia tão castigada pelos esforços de tantos anos de trabalho...
Querendo ou não, Victor viu-se cercado de deuses depois que veio a Jerusalém para começarmos sua biografia. Abrirei essas portas sem precisar que o chaveiro me atenda madrugada adentro.
Os sinos da igreja de São João Batista dobram agora as seis horas da tarde.